Alfred Hitchcock é um gênio da sétima arte. Seu trabalho é grandioso e diversas de suas obras são consideradas clássicos do cinema. Fora a constante referencia, vez ou outra algum cineasta ousa recontar alguma de suas histórias. Em 1998 Gus Van Sant tentou a sorte com Psicose (1960) e, mais recentemente, Ben Wheatley trouxe Rebecca, A Mulher Inesquecível (1940) de volta para os holofotes.
A questão é que, diferente da proposta de Gus Van Sant de recriar quadro por quadro, a nova versão do ganhador do Oscar de Melhor Filme de 1941 só se apropria de um amontoado de momentos da obra original para distorcer a narrativa e suprimir temas importantes. O resultado não poderia ser diferente, um filme tão recortado que não consegue nem se estabelecer como homenagem nem como uma visão diferente ou releitura do livro fonte.
O mais revoltante é que Wheatley parece tentar se esquivar do “plágio” quando interliga de uma maneira completamente diferente as cenas que rouba de Hitchcock. Ele ignora o fato desse material ter sido pensado para cumprir um determinado propósito na narrativa. Um exemplo disso é a relação com a arquitetura que, em 1940, foi filmada de cima para baixo resultando na impressão de grandeza, solidão e opressão. Em contrapartida, a filmagem de 2020 transporta a câmera ao nível do olhar e transforma o suspense social e físico em algo macabro e sobrenatural.
Esse é o problema, tentar contar o mesmo roteiro sem se ater aos significados que Alfred interligou a ele através da linguagem. E, como se isso já não fosse o suficiente, piora quando imagina que o espectador carregará consigo algumas das percepções que o filme de 40 traz. Por exemplo, o Maxim De Winter de Armie Hammer não transborda a mesma ausência só por ter menos tempo de tela no meio do filme. Ele deixa vazio o constante senso de partida que o Maxim De Winter de Laurence Olivier levava consigo. Em suma, erra até onde imita.
A criação e adoração de um mito cotidiano é mais um aspecto extraordinário que acaba perdendo relevância aqui. Rebecca é um ídolo cultuado por todos que a cercam, essa noção é amplificada quando ela é distanciada tanto das personagens quanto do espectador sem ter nenhuma característica estética visível atrelada ao seu ser. A partir do momento que ela ganha uma trajetória mundana, vide quando Sra. Danvers cita sua adolescência, ela perde impacto. A cena em que é possível visualizar partes de seu cadáver ser retirado do mar prega de vez o caixão do significado que sustenta o filme e deixa para trás apenas uma história de vingança, romance e enganação.
Inclusive, a Sra. Danvers, que é uma das personagens mais fascinantes do original, acaba sendo ofuscada. O antagonismo cego e louco advindo da obsessão que guiava seus atos foi substituído por uma certa vilania com uma percepção racional dos seus arredores. Isso é evidenciado nas suas diferentes mortes: enquanto a original morre no fogo do quarto em que preservava a última presença de Rebecca, a atual se sacrifica no mar em uma tentativa de se igualar ao ídolo, a adoração cede lugar ao companheirismo.
De fato, o filme acaba focando no que tem de menos interessante. A personagem de Lily James, a “nova” Sra De Winter, ganha uma capa mais sorrateira (para não dizer malandra) no terceiro ato. A fatídica frase “Você envelheceu tanto em poucas horas” deixa de ser um retrato do peso que a realidade implica na percepção de mundo do indivíduo para se tornar uma mera transformação do olhar em algo “malicioso”. A encarada possessiva que ela entrega no último quadro do filme distorce não só o romance, que é bem mais desenvolvido nesse filme, como também acaba com a inocência da personagem que foi jogada em um ambiente nocivo.
Por mais que a função crítica não seja comparar, em um filme que evoca tanto de uma outra obra sem querer deixar isso explícito é difícil se eximir da sobreposição. Talvez essa seja a prova de que Hollywood precisa deixar o trabalho de grandes diretores envelhecer como vinho ao invés de suprimi-los com releituras medianas.